terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A história da etiqueta

Eu amo história e nunca perco um bom livro. A história da comida é algo fascinante, em especial a história da etiqueta, que, em geral, dita não apenas o comportamento à mesa, bem como um comportamento da sociedade em geral.

 

Vamos começar pelo começo!

 

A faca! A faca, obviamente, começou com um instrumento de caça e defesa. Mais ou menos 1 milhão e meio de anos atrás, quando os Homo Sapiens dominavam as outras raças humanas, eles aprenderam a criar armadilhas e esta lança pontuda era usada não apenas para abater o animal, como para cortar frutas.

 

Já quando os humanos caçadores-coletores iniciaram o cultivo do trigo e pequenos vilarejos começaram a surgir próximos ou em volta de templos, o homem descobriu que era vantajoso capturar mais animais da mesma espécie e abater somente após eles procriarem. E quando isso acontece, a agricultura se dá e receitas passam a surgir. Estamos falando em mais ou menos 10 mil anos a.C, quando surgem as conchas ou colheres. Eram usadas, literalmente, conchas do mar amarradas a paus e serviam tanto para molhar as receitas de pães quanto para servir caldos e sopas.

 

Então entendeu-se que um objeto pontudo e com dois dentes ajudava o homem a não queimar suas mãos ao colocar e retirar as carnes no fogo. Este mesmo objeto, o garfo, foi o último objeto a surgir como talher e só foi aceito à mesa na corte do Rei Sol, Luís VIX, o verdadeiro criador da etiqueta.

 

Vale ressaltar que a princesa Teodora, de Bizâncio, quando foi para casar-se com Domênico Salvo, no século XI, levou em seu enxoval seus próprios talheres, incluindo um garfo de duas pontas. Considerada uma heresia, pois Deus nos deu os alimentos para comer com as mãos, o uso dos talheres foi tratado como uma ofensa e ela só foi perdoada por ser considerada “de fora do reino e sem costumes reais”. No entanto, foi a partir daí que a nobreza e o clero iniciou o uso dos mesmos.

 

No século XVI as cadeiras, que eram usadas somente por reis e o alto clero, são levadas para as mesas, para os grandes banquetes. Desmontava-se o cenário e os grandes bailes davam início.

 

Aqui já eram os anos 1600 e quando a corte do Rei Sol cria regras de comportamentos, mais precisamente seu irmão, Filipe, que é incumbido de escrever as regras de etiqueta, Versailles determina ao mundo como se comportar em sociedade, o que é admissível ou não e, importante dizer, era a etiqueta que determinava o grau de importância da pessoa: quanto mais refinada ela era, maior seu status. É também neste século, XVII, em especial com a criação de Versailles, que as salas de jantares passam a ser lugares exclusivos para os banquetes e os salões de eventos se tornam espaços separados.

 

Essa mudança dá espaço para grandes chefs surgirem, e no século XVIII o maior chef de todos, Auguste Escoffier, cria a Brigada da Cozinha: ao introduzir uma hierarquia na equipe, acabou com o caos da cozinha e atribuiu responsabilidades claras para cada membro. A cozinha se torna um lugar profissionalizado e as cozinhas do mundo todo passam a adotar a metodologia de brigada. Os hotéis trazem o mesmo conceito e profissionalizam o ambiente, criando-se o conceito de hotéis de luxo.

 

No século XIX, com a expansão de Napoleão Bonaparte, a corte Portuguesa foge para o Brasil, deixando apenas o príncipe regente em Portugal.

 

Com a vinda da família real, o Rio de Janeiro se torna palco para o mundo e o desenvolvimento da cidade se dá tanto para as artes (criação de museus, de teatros, de jardins), quanto para as ciências (universidades, centros de pesquisas e de imunização). A família real traz também o conceito de etiqueta, os talheres finalmente chegam ao Brasil e, assim como na corte do rei Sol, quanto maior o grau de instrução de um individuo, maior seu posto hierárquico.

 

É também nos anos de 1800 que hotéis de luxo chegam ao nosso país, e em 1919 nosso mais famoso Hotel de Luxo, Copacabana Palace, surge inspirado nos hotéis Negresco, em Nice, e o Carlton, em Cannes.

 

No século XX, o conceito de hierarquia e disciplina estão aplicados às instituições, às empresas e, em especial, às leis. A visão do mundo ocidental se abre para o oriental. Chegam às nossas mesas a Nouvelle Cuisine. Já não precisamos cozinhar uma carne até derreter e comer pizza com as mãos já não é uma heresia. Julia Child desmistifica a cozinha francesa para as donas de casa americanas, as guerras mundiais mostram ao mundo o poder da mulher e as mulheres não querem mais se sentir aprisionadas dos lares. O vegetarianismo vai mudando, pouco a pouco, a dimensão dos nossos criadouros, da matança animal, do uso de bichos para testes da indústria cosmética.

 

No século XXI vemos uma derrubada de conceitos. As empresas já não estão preocupadas se você está usando crocs ou terno Armani. Você pode criar um projeto em cima de um skate e ser influenciada por uma menina de 8 anos com ideias divertidas no tiktok.

 

O que, no entanto, nunca esteve tão em alta é o quanto as vidas importam. O quanto as pessoas querem ser tratadas com igualdade e a busca por uma sociedade justa é iminente a este século. A ideia de hierarquia segue atrelada ao conceito profissional, mas imputado a isso regras de convivência e respeito. Não existe mais a permissão para a grosseria e as relações mudam com a ideia de limites! Nunca foi tão imprescindível dizer NÃO!

 

E, ainda assim, com a pandemia, muitas pessoas reencontraram em seus lares a oportunidade de restabelecer uma máxima antiga, o aconchego a mesa. A etiqueta vem intrínseca a este propósito, com o poder de consumo de cada individuo, que passa a comprar itens de Mesa Posta, e este é o mercado que explodiu nos anos de 2020 e 2021 e sua expansão é vista como o mercado do presente. Não é que as pessoas querem voltar a servir a mesa com 3 garfos e 3 facas, mas pessoas querem, novamente, sentir o gosto aliado ao olfato e visão, do aconchego da mesa. Nunca foi tão importante estar junto dos teus. E, à mesa, fazemos isso com muito mais entusiasmo e disposição.

 

 

 

Chef Gabi Junqueira | Cozinheira Internacional, professora e chef na Gabriela Junqueira Gastronomia.

Formada em Cozinha Internacional pela escola Wilma Kovesi. Especializada em comida francesa pelo Institut Paul Bocuse, na França. Pós-graduada em Cozinha Avançada com ênfase em química dos alimentos, pelo SENAC.Bartender pela New York Bartending School.

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